[nera 11]

I.

São comuns os desvarios desse poema tardio que não vai e não fica. Que me distrai no decorrer das linhas. E destrambelha as rimas. E desenrola os vícios. Que me indica o caminho no retorno do inferno e se retira.

 

II.

Me recordo dos mil poemas que morreram enquanto a eternidade do aro-foice era sinal de garantia. Pena que a parte do que parte seja parte recaída. Quiçá seja esse o motivo da tempestade na rotina.

 

III.

Há um poema pendurado na parede dos prêmios e aplausos. É nele que falo sobre a maldição do acaso. É ele que me lembra diariamente do que não gosto, do que preciso e do que não faço. É ele que me destroça toda vez que me descalço. Que me desnuda quando sussurra um nome que não falo. E é dividido em três pedaços: "a falência dos meus órgãos, dos meus gostos e do meu tato". Nasceu prevendo um futuro feito de hiato.

 

IV.

A paz não floresce no asfalto da cidade, por isso o pé cratera no chão quente. Por isso a ausência faz morada nas lacunas. Por isso a residência no vácuo é o conforto do poeta. Por isso não se fazem mais poemas em linha reta. Por isso fica, "porque a desgraça do maior amor do mundo não morre", mas o poeta desconfia. É que o maior amor do mundo, quando compartilha o êxtase até a loucura, decodifica o intervalo entre um março e um agosto abarrotado de sobrevida. Se decompõe com o tempo e se dissipa nos quilômetros que se acumulam igual ao asco. É nesse espaço que o poeta alucina – porque sabe que é mentira. O vento descascou a pele além das nove centenas de dias.

 

V.

Por amor à Ana fiz um conto que relatou o horror da noite das minhas sete ruínas. Ana me ressuscitava toda vez que eu morria. "Ana é levante, é verdade, é mentira, é constante": o resultado estúpido da insistência lúdica da mistura de duas existências pífias. Uma reunião anual de almas falidas. Uma promessa retroativa e indeferida que a caneta tinteiro do destino não assina. Simultaneamente um milagre e uma perda preciosa de tempo de vida. E eu respondia: “Ana é pausa, Ana é canto, Ana é resto”. Era um paradoxo ambulante que me sorria quando me fornecia o oxigênio que me permite a poesia. Uma fonte cíclica que não seca, mas também não vinga. E eu respondia: “Ana é a convidada que deixa pranto em fim de festa”. Foram 3 páginas girando ao redor do vão existencial onde o contista tropeçava e se redescobria. Dois tempos pontuais: "quando Ana me deixou", logo na primeira linha, "e depois que Ana me deixou", confessou como se estivesse em uma romaria indiscreta. E eu respondia: “Ana, por inteiro, é a existência do meu ofício de poeta”.

 

VI.

Ana é mais que um segredo. Mais que um segundo. Que a sequência. Que o afeto. Que a urgência. Que o sagrado. Ninguém inventou as palavras pra que Ana caiba em um só relato. Ana é reticente, indecente, necessária e entorpecente. É um estrago. Ana tem asas. Ana é mais que um arquivo trancado: é um Monet pintado pelo próprio diabo. É um antidiário. É um letreiro num edifício na Pinheiros escrito torto, fundo e brilhante. Agressivo. Maldito. Arrogante. Um conteúdo que, de tão incompreensível, causa horas de tráfego: quatro palavras, reticências, uma vírgula e um traço. A descontinuidade do vôo de Ana desqualifica as telas, os palcos e os tablados.

 

VII.

O sétimo ato do poema tem o fôlego do equinócio como ponto de partida. E a subexistência do poeta como garantia. E a obviedade do verde-âmbar dos olhos como um alimento que regurgita. De um lado, a maldição à primeira vista. Do outro, a adoração infinita mesclada com ojeriza. Talvez por isso a língua que maldiz seja a mesma que excita. Daí que os versos vívidos se harmonizaram com as rebeliões cotidianas do fogo, do sangue e da tinta. Apesar disso, o cheiro da curva entre o pescoço e o ombro permanece impregnado nas narinas. Apesar disso, persiste na memória o estrebuchar dos músculos de um amanhã que não chegaria. O poeta vê a desconfiança das cadeiras, das janelas, das echarpes, dos estandartes, dos muros, dos pandeiros, dos microfones, dos cinzeiros, das cinzas, dos restos, dos rastros e da Luz que desaparecia. "Sei que não é uma frase, só um começo de frase, mas foi o que ficou na minha cabeça" no virar da segunda badalada do 55º dia da sua partida.


- elizabeth gomes 

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